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eu não vou salvar ninguém

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1. O mais difícil em um filme é evitar a sua natureza moral. Em Knock at the Cabin , isso parece ser definitivo para construir seu horror, amplificar o sentido de suas imagens e complicar seu espelho com o espectador. Duas coisas ficam declaradas até sua conclusão: que a fé é a doença da alma e matar é inevitável. 2. Não é muito interessante ficar fazendo diagnóstico de filmografia a cada novo lançamento de um cineasta, mas nesse caso parece difícil se aproximar das particularidades do projeto sem entender a grande divisória no cinema do autor. A partir de The Visit , os filmes abandonam sua gênese pictórica e são tomados por um formalismo totalmente físico. Ou seja, a construção de imagens não parte do quadro para seu campo interior (sua profundidade, sua distribuição, seu foco...), a coisa opera por determinações de posicionamento concomitantes ao andamento do plano, os personagens determinam o caminho da imagem ou são deslocados pelo deslocamento dela. Isso também acompanha o movim

CINEMA DE REFLUXO #3: no escurinho do meu quarto

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  1. Hideshi Hino carrega seus quadrinhos no preto, criando a escuridão que circunda seus personagens e os consequentes derramamentos de sangue que mancham toda página. As vítimas da tinta preta, geralmente, são essas figuras rechonchudas e pálidas, prontas para serem apodrecidas, esquartejadas ou esfoladas.  Afasta-se de outros gigantes contemporâneos do mangá de horror como Suehiro Maruo, pois trilha os visuais da desproporção, do cartunesco mais elementar, das aparências cômicas de personagens que vão sendo retorcidas pelo detalhamento das violências que sofrem, dos monstros que enfrentam e que acabam por se transformar. De forma mais imediata, podemos dizer que Hino, quadrinista, está bem longe do campo do retrato e da realidade. Seus gibis são do tipo que se aprofundam inteiramente em seus próprios ângulos de terror, calcados por formas arredondadas e assimiladas em figuras ingênuas que são desenhadas exclusivamente para trilharem os caminhos mais grotescos possíveis. Seus qua

ao alcance das mãos

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  Essene (Frederick Wiseman, 1972) 1. Não falemos em documentário. É cansada e extenuada a discussão que já se encerra quando Flaherty filma Nanook : o real, o “documento”, não me interessa, pois nunca irei conhecê-lo. Interessam as formas da mentira, à altura do que tenho diante de mim. Falemos em registro. É precipitada a ideia de grandeza no cinema. Quando o cineasta dispõe a lente diante do objeto, seja ele qual for, não há determinação prévia a ser respeitada, a ser colocada em prática pelo formato. Se assim fosse, o cineasta nada mais seria além de um comunicador entre o fator não-registrado (o olho nu, viajante, aleatório, comum a todos que podem ver e ouvir) e o que capacita o registro (a câmera, o gravador). Não é o caso. Com a lente disposta ao registro, tudo está de volta ao zero. Tudo acaba de se conhecer, está à prova diante dos meios. Nada é conhecido antes que comece a ser gravado e, a partir do momento em que é gravado, nada que se conhecia pode permanecer o mesmo.

eu não sei onde fica o mato grosso do sul

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 1. Existe algo nas obras malditas que acaba por revelar os limites, tanto dos espectadores quanto dos realizadores. Compreende-se, pelo menos em partes, quais as formas de afastamento entre o produto e o consumidor, exibe algumas das estranhas linhas que separam experiências comerciais vitoriosas de pontos fora da curva, aberrações, anomalias industriais. É o que se esconde por trás da rejeição, o conjunto de desconjunções que permite a um autor se afastar dos cânones, gozar da liberdade da má fama, resguardar uma obra da celebração, do holofote. E tudo começa pela ambição. Quando Roberto Farias se deslocou até a fronteira do Brasil com o Paraguai para filmar Selva Trágica (1963), as pretensões eram vivas. Após uma sequência de sucessos comerciais e críticos, havia espaço cativo para que o cineasta emplacasse mais uma vitória. A resposta foi dura. Selva Trágica não alcançou nenhuma das expectativas financeiras, teve fraca reverberação e saiu de cartaz em pouco tempo. A consequênc

síndrome de crumb

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  Crumb (1994), de Terry Zwigoff 1. Robert Crumb é um sujeito curvado, mais alto do que aparenta, fortemente desengonçado. Suas manias são insuportáveis e seu jeito arrogante é tão escroto que consegue ser charmoso, pelas piores razões. Vê-lo falar já é uma experiência magnética, por si só. Robert é um completo alienígena social que concentra uma fissura pelo trabalho, pelo acúmulo de material e pela repetição de ações. Zwigoff enquadra Crumb em ambientes públicos, num direto enfrentamento semântico com o segundo plano em que se encontra, usando um chapéu de palha e uma gravata borboleta, com seus dentes protuberantes e seus óculos fundo-de-garrafa que fazem seus olhos saltarem do rosto. Sua obra concentra décadas de expurgo psíquico, em uma extensa produção gráfica marcada pela exploração máxima de seus desejos e de sua demência, que sempre parecem se confundir. Entre seus três irmãos, é o mais bem resolvido. Charles Crumb é um homem suicida, celibatário e que ainda vive com a mãe

um curta de isolamento

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  1. As ruínas estão presentes na clausura. Elas são nosso abrigo constante, que desfaz o limite entre o exterior e o interior, proporcionando um ambiente de destruições planificadas. São o ponto de partida para percebermos o tempo que habitamos a partir do que já foi deixado para trás. Portanto, são escritos visuais de absoluto interesse. E o que há de buscar escrito nas paredes que denunciam o tempo? Adentremos suas profundezas, suas cavernas e criptas, para descobrir o que há para ver e ouvir nas runas geológicas, na erosão do espaço primitivo que afirma nossa estadia no presente. 2. O conceito "filmes da pandemia", em geral, parece uma ideia meio redundante. Em um momento de grande exarcebação das temáticas inerentes ao estado das coisas, é costumaz que obras que se proponham a ingressar na via do momento acabem por sofrer de reiterações da realidade, sem qualquer tentativa de busca pela especificidade, pela capacidade de criar com o que está mais próximo de seu local

CINEMA DE REFLUXO #2: a virgem em apuros

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1. A propriedade rural é o espaço onde o fazendeiro rege o próprio tempo, um território laboral em conformidade com as vontades impostas pela natureza e administrado pela figura que aceita essas imposições. É, portanto, um território de paciência, onde o bucolismo não é pensado como atributo, apenas vivido em sua experiência mais subjetiva. Mas há sempre o perigo do aparecimento da cidade. Pensemos no poder desse maniqueísmo. Se há como idealizar o espaço onde impera a conformidade entre o tempo da natureza e o conhecimento do homem, há como romper de formas incisivas nesse estabelecido modelo de compensações. Há como intuir nesse espaço uma ruptura da ordem rotineira com a simples presença do estrangeiro urbano e, assim, aguardar pela reformulação da vida interiorana, já que sabemos que ela nunca pode ser totalmente interrompida. Existe uma pureza a ser corrompida, um agente para corrompê-la, e a certeza da assimilação dessa corrupção por parte do sujeito violado. 2. Em Lisa, Lisa (AK