666 palavras sobre séance

 



 1.

O desejo de materialização do imaterial vai da academia à polícia em Séance, filme televisivo. Um casal formado por um captador de som e uma médium sensitiva (Kōji Yakusho e Jun Fubuki), dois personagens ocupados com a recepção do invisível, se aventuram na tentativa de comprovar um acaso sobrenatural, mesmo que isso signifique falsear todas as suas premissas para comprovar uma tese.

Cat People, um pastiche. Em 42 já ensinaram a lição, desloca-se o medo do desconhecido para o escuro total e produz-se o efeito da apreensão constante, do questionamento permanente do que não está diretamente iluminado. Mas não é só isso, as aparições diurnas de Séance, iluminadas e visíveis (a mulher flutuante da cafeteria, a criancinha suja de lama) não localizam o assombro na dúvida da escuridão, são horrores materiais do anômalo, inserções na realidade sem qualquer premissa lógica. Já é repetitivo associar essa filmografia aos aprendizados artesanais da era dos estúdios, são casos como Séance que aproximam Kurosawa dos referenciais de prazer e humor plástico característicos de cineastas da geração dos 70, de Tobe Hooper e George Romero, são imagens do sobrenatural encarnadas.

A tonalidade sombria da encenação produz um efeito imersivo através de variações de sonoridades graves, cortes abruptos de silêncio e, pelos enquadramentos, na valorização cênica do vazio. O escapamento dos planos, que escorre para os cantos escurecidos, para as portas abertas, os cômodos desocupados, dão vazão a uma geometria de cena esforçada em valorizar esses vazios, onde se concentra o clima que formula os sentidos do medo. O medo vira uma espécie de conforto, a presença de seus personagens amaldiçoados é tomada por casulos fantasmagóricos, tornam-se cada vez mais envoltos pelas aparições sombrias até que estejam cobertos por seus calafrios. Encolhidos dentro de um lençol.

O fantasma é signo fílmico pela maleabilidade de sua presença, pelas diversas alternativas de captação das aparições. Um fantasma é uma luz que acende e apaga no fundo de um plano, é uma caixa fechada que se mexe sozinha, uma sombra que se mantém em pé, uma mão que surge sem um braço, uma voz inexplicável que se propaga sem origem, é uma pessoa comum, de carne e osso, que some e desaparece diante do olho. O caminho gradual de Séance, a problemática enfrentada pelos seus personagens, é de envolver-se pelo tecido sobrenatural de maneira completa, da origem psíquica até o contato imediato, do burburinho fantasmagórico até a assombração capaz de deixar rastros de lama, sem conseguir comprovar sua experiência por determinações malditas de um destino condenado. Do que adianta experienciar que não se pode explicar?

Permanecem esses encontros em um cotidiano desregulado. Os quadros possuem suas jornadas particulares, apoiados em detalhes de movimentação e comportamento. Nisso as sequências se tornam sucintas, começam no meio da ação e se encerram no decorrer de outra (o diálogo da abertura, o sequestro no parquinho, a sessão espírita caseira, o doppelganger no jardim). Os diálogos são especialmente encenados nessa coreografia metódica de passagens. Quando o tempo se arrasta em um gesto, quando os procedimentos diários saem do ritmo, é sinal de uma incorporação, é presságio da aproximação de uma entidade em tempo fúnebre, disposta à cena em temporalidade alternativa.

Não é fácil enfrentar o desconhecido, mas a anomalia sugere ser mais desconcertante. Quando Koji Yakusho joga gasolina e ateia fogo em sua cópia fantasmagórica que surge sentada em sua frente, os ângulos apreensivos do vazio resultam de vez sua capacitação enérgica em uma imagem vivente, como se as brechas melancólicas da desocupação caminhassem para um resultado congruente de fisicalidade. Sente-se o frio na espinha, escuta-se o sussurro no vento, a aparição caminha até seu espectador, performa sua coreografia dilatada, preenche a culpa de seu assassino com as marcas de suas mãos. Diante de tanta materialidade, não é difícil diferenciar uma incorporação mediúnica verdadeira de uma performance barata. O acadêmico se levanta diante da farsa final da médium, quando ela tenta atuar sua tese mentirosa, para apontar seu fracasso teórico. Não adianta falsear, os fantasmas de verdade sempre aparecem.


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