no escurinho do meu quarto
1.
Hideshi Hino carrega seus quadrinhos no preto, criando a escuridão que circunda seus personagens e os consequentes derramamentos de sangue que mancham toda página. As vítimas da tinta preta, geralmente, são essas figuras rechonchudas e pálidas, prontas para serem apodrecidas, esquartejadas ou esfoladas. Trilha os visuais da desproporção. Seus gibis se aprofundam em seus próprios ângulos de terror, calcados por formas arredondadas e assimiladas em figuras ingênuas que são desenhadas exclusivamente para trilharem os caminhos mais grotescos possíveis. Seus quadros são maleáveis às formulações de seus infernos, igualmente retorcidos e fluidos, criando todo um projeto em que há um universo de dissonâncias borbulhando enquadramentos curvilíneos e bonequinhos esféricos.
Quando é convidado para escrever e dirigir o segundo filme
da série Guinea Pig, Hino é obrigado
a reimaginar sua invenção de horror. Limitado a um orçamento ridículo e fechado
em uma única locação, resulta seu esforço em Guinea Pig 2: Flowers of Flesh and Blood (1985) e, posteriormente, Guinea Pig 6: Mermaid in a Manhole
(1988). O que mais surpreende, na
projeção conjunta dos filmes, é a quantidade de particularidades
cinematográficas que Hino extrai do contexto. Indo em direções contrárias a
seus arranjos quadrinhísticos, encontrando cinema na filmagem em vídeo e na abstenção de narrativas floreadas, encontramos um trabalho
muitíssimo personalista dentro de um projeto afundado em convenções. É o
esforço de compreender sua breve e trevosa jornada pelo aparelho fílmico.
2.
FLOWERS OF FLESH AND BLOOD
Não há premissa estética mais direta: um assassino em série
sequestra uma jovem mulher e a desmembra em frente às câmeras, enquanto ela
está sob efeito de uma droga que a inibe de sentir qualquer dor. A ambiência
inicial, ao acompanharmos o rapto e a preparação para o grotesco, é
especialmente terna. Sugere um cenário para um pinku qualquer, porém as penetrações de Hino são outras.
Devemos evitar as precipitações, pois logo os quadros serão assaltados pela
carne.
O que se sucede, sem interesse por conflito, é uma
aproximação silenciosa e íntima da maratona de destruição que o corpo da vítima
irá sofrer. Até o momento em que a serra do assassino finalmente encontra a
pele da garota, ainda parece que algo poderia salvá-la. Não é o caso. Quando
seu primeiro membro é serrado, o filme desacelera, o tempo padece, e tudo passa
a ser sobre repetitivos gestos de mutilação, filmados com insana serenidade.
Enquanto os instrumentos cortantes afundam na carne, a
vítima, dopada pela falta de sentidos, observa, tonta, seu algoz. Ele, em sua
calmaria, ocupa-se em não desperdiçar nenhum momento de sua proposição artesanal. Serrando as pernas, os braços, as mãos e a barriga de sua
vítima, o assassino inebria-se nos membros libertos da condição vivente. A cada
etapa, muda as cores dos filtros que iluminam sua câmara de tortura (seu ateliê) e concentra-se nas cores e
texturas que acaba por produzir em conjunto com sua matéria prima grotesca.
O que mais parece interessar à câmera de Hino são os
detalhes de seus efeitos práticos, suas borrachas serradas e suas tintas
rubras, aliados ao silêncio da clausura no quarto do assassino e sua
unidimensional proposição dramatúrgica, que não abre espaço
para nada além de consequências sensoriais de uma barbaridade gratuita. Ao invés do que viria a ser o gênero torture porn, com seus vícios morais e seu miserabilismo, Guinea Pig 2 é uma
criação lírica, que estende uma ação grotesca por um determinado
tempo e por um determinado ângulo até que ela seja assimilada com uma
intimidade desconcertante, invocá-la até seus derradeiros estágios poéticos.
3.
MERMAID IN A MANHOLE
Partimos para uma premissa mais fantástica. Um pintor
atormentado encontra no esgoto uma atraente sereia à beira da morte, leva a criatura
para casa e se dispõe a retratar o apodrecimento de seu corpo, infectado por
bolhas e perebas prestes a explodirem. Apesar de uma narrativa mais encorpada,
Hino não se ocupa com muita coisa além de uma escatologia fabular.
Ainda mais colorido que Flowers
From Hell, Mermaid concentra-se
na obliteração de um corpo fantástico. Ou seja, dispõe de uma infinitude de
possibilidades grotescas ainda mais alucinantes. No corpo da sereia amontoam-se
formações perebentas expelindo fluidos corporais coloridos que vão do branco ao
lilás. As cores escorrem pela carcaça agonizante (aqui, a dor é mais do que
presente) e engorduram o corpo da sereia moribunda. De dentro das perebas
estouradas saem larvas, minhocas, serpentes, vermes, todo tipo de ser
rastejante e escroto que parece constituir as entranhas da criatura de rosto
angelical. Amontoada em vômitos, tumores e outros materiais engordurados, a
sereia se prontifica à imortalidade pelo pintor obsessivo que, em seu quarto
escuro, se entrega totalmente à fixação por aquele corpo que borbulha nojeiras,
reimagina qualquer concepção de doença, e os dois ficam em um microcosmo
insuportável de aberrações corpóreas.
Hino não se afasta disso em momento algum. Metade do tempo
de tela é dominado somente pelos detalhes desse corpo em fugaz apodrecimento,
vívido pela quantidade de horrores que é capaz de produzir. Os planos são
fechadíssimos, sua ambiência é sufocante e verde, percorrendo a maior
aproximação que consegue dos piores estágios físicos.
Partindo da invenção do precário e atingindo camadas
nunca antes vistas de depravação visual e irresponsabilidade artística, seus Guinea Pig alcançam o mais custoso de
todos os elementos do terror: o sentimento. Nessas tocas grotescas de
personagens dementes pode surgir todo tipo de depravação, mas nunca falta o
encantamento com o fundo do poço.
4.
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