crumb síndrome
Crumb (1994), de Terry Zwigoff
1.
Robert Crumb é um sujeito curvado, mais alto do que
aparenta, fortemente desengonçado. Suas manias são insuportáveis e seu jeito
arrogante é charmoso, pelas piores razões. Vê-lo
falar já é uma experiência magnética. Robert é um completo alienígena social
que concentra uma fissura pelo trabalho, pelo acúmulo de material e pela repetição de
ações. Zwigoff enquadra Crumb em ambientes públicos, num
direto enfrentamento semântico com o segundo plano em que se encontra, usando
um chapéu de palha e uma gravata borboleta, com seus dentes protuberantes e
seus óculos fundo-de-garrafa que fazem seus olhos saltarem do rosto. Sua obra
concentra décadas de expurgo psíquico, em uma extensa produção gráfica marcada
pela exploração máxima de seus desejos e de sua demência.
Entre seus três irmãos, é o mais bem resolvido. Charles Crumb é um homem suicida, celibatário e que ainda vive com a mãe. Max Crumb é um molestador, psicótico e solitário, que passa os dias preso em um pequeno apartamento, sentado em uma cama de pregos que ele mesmo fez. Crumb é um filme sobre esses três homens e os pequenos espaços que eles ocupam no mundo.
2.
O aspecto hipnótico que Zwigoff consegue manter durante as duas horas de Crumb, se deve, majoritariamente, pela sua compreensão estética do trabalho do autor, que auxilia a aproximação entre ele e a câmera. Anos antes de fazer Ghost World (um filme que tem muito mais a ver com Crumb do que com Clowes), Zwigoff já entendia que, antes de tudo, a obra de Crumb se concentra em dois fatores: posições e movimentos. A fissura sexual está presente nesse insaciável registro de poses, curvaturas, gestos, sombras, caminhares...
O trio de
irmãos Crumb funciona como centro do filme, são a expressão de uma
possível origem para os grandes fatores que irão se firmar no trabalho do
quadrinista. Além de estarem próximos da semente de todas as suas doenças,
são figuras fisicamente expressivas, cheias de curvaturas próprias e gestos
maníacos. São enquadrados em um estado declarado de doença. E nada além da
doença poderia descrever melhor a pulsão primordial da obra de Crumb.
A partilha de traumas e sequelas dos irmãos Crumb se
manifestam diretamente em suas existências e em seus modos de agir diante do registro. Há uma
simetria muito clara entre a expressão artística de Robert e as manifestações
neuróticas e doentes de seus irmãos anônimos (especialmente na forma como os
três se concentram em quartos fechados, apertados, com um desejo constante de
alienação e proteção). Portanto, é clara a equivalência entre a feitura de
quadrinhos e a organização caótica de uma mente doente.
Os grandes momentos do longa se concentram nas interações de
Robert com Max ou de Robert com Charles, suas memórias compartilhadas, os
pontos comuns entre seus distúrbios. Robert tem seus desejos suicidas
amenizados pela mecânica de suas mãos, ou seja, pelo ato obsessivo e doente por
trás de seus desenhos, enquanto Charles e Max dependem de doses altíssimas de
medicação apenas para se apresentarem diante das câmeras.
Na partilha de doenças, certamente se sobressaem as perversões sexuais. Robert, enquanto símbolo de um artista em carne viva sobre suas mais grotescas e doentes fixações, é feliz em apontar a origem igualmente parafílica dos quadrinhos que Charles produzia na infância, quando era obcecado por um menino que viu na televisão. Charles passou a reproduzi-lo graficamente de forma incessante até atingir a maioridade, quando transformou seu impulso sexual em uma forte repressão de seu próprio corpo. Por outro lado, Max, criminoso sexual, não hesita em contar seus casos de assédio, que são ouvidos por um sorridente Robert. Entre os três, o sexo existe como última manifestação de distúrbios mentais que caracterizam sua postura em relação a tudo que os rodeia.
Zwigoff enquadra as mãos trêmulas de Max como enquadra as mãos de Robert ao desenhar, além de retomar a influência de Charles na produção de Robert, quando ordenava que desenhasse para ele na infância. Crumb é capaz de compor o espelho dessas manifestações vivas de um processo coletivo de traumas e abusos, presos em quadrados sem saída. Explora suas grutas, refúgios mínimos, sujos, cavernosos, preenchidos por síndromes, decorados por manias e habitados por homens incapazes de se comunicarem fisicamente com o mundo exterior. Uma aventura de desesperos e neuroses, incansável.
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