ao alcance das mãos
Essene (Frederick Wiseman, 1972)
1.
É precipitada a ideia de grandeza no cinema. Quando o
cineasta dispõe a lente diante do objeto, seja ele qual for, não há
determinação prévia a ser respeitada, a ser colocada em prática pelo formato.
Se assim fosse, o cineasta nada mais seria além de um comunicador entre o fator
não-registrado (o olho nu, viajante, aleatório, comum a todos que podem ver e
ouvir) e o que capacita o registro (a câmera, o gravador). Não é o caso. Com a
lente disposta ao registro, tudo está de volta ao zero. Tudo acaba de se
conhecer, está à prova diante dos meios. Nada é conhecido antes que comece a
ser gravado e, a partir do momento em que é gravado, nada que se conhecia pode
permanecer o mesmo. O registro é o acaso planejado, a disposição de um instrumento
atento que é capaz de infiltrar-se dentro de um meio aleatório, de desencenação, para formulá-lo como uma
convicção de vistas, de impressões.
Posteriormente (mas, também, durante o registro), a montagem se encarregará de transformar o
encontro em filme.
2.
Não falemos em humanidade. Muito menos em antropologia.
Essene, de
72, compreende um tempo indeterminado que se propõe à coexistência da lente com
um grupo de sacerdotes em um monastério. Acompanhamos suas feições, hábitos,
conflitos e andanças. Wiseman os persegue.
O registro é a própria conclusão do meio. Wiseman se infiltra
em instituições a partir do momento que as coloca como ponto de partida de um
centro de criação que terá, como fim, as mais graves aproximações com o
indivíduo em tela. Em seu cinema, a instituição nomeia a pulsão (o hospital, o
hospício, a biblioteca, a prefeitura), mas nunca conclui o movimento. O
movimento existe, quase invisível, pela linha visual e sonora que decide quando
sair de um plano e ir para o outro, preenchido pelo indivíduo disposto à
câmera.
Então, vamos ao indivíduo - o fio e a carne da encenação. Um exemplo, logo do começo do filme: está lá um jovem sacerdote, sentado em uma roda com colegas do monastério. Seu rosto é imigrante, seu cabelo longo e seus óculos poderiam remeter a qualquer jovem revolucionário que, no início dos anos 70, andaria de blusa aberta e calça jeans em Nova York. Mas não é o caso, seu hábito denuncia seu espírito, o externaliza de outras maneiras. Ele fala olhando para o chão, a câmera está fechada na altura de seus ombros. Ele fala da cidade, fala de Nova York, fala sobre como todos ao redor o entristeciam e o enchiam de angústia. Foi assim até perceber que podia amar todas aquelas pessoas, até perceber que sua espiritualidade o encaminhava para outros lugares além do desespero. Seu relato é breve, não conhecemos seu nome e não retomamos a ele no filme.
O quadro que lhe pertence, que lhe foi dedicado pelo filme de
Wiseman e que integra uma espinha dorsal fílmica de ossos finos, sempre à beira
do colapso, basta. A lente não se descola de seu rosto enquanto não encontra
algo que lhe é necessário, e a montagem não tarda em existir para abandonar
contextos, para trabalhar contra a informação e a favor da formação.
Mesmo estando ao redor e, ocasionalmente, no interior de
relações intrínsecas ao debate do espírito e aos ritos mais custosos à uma
instituição religiosa, Essene não se
entrega ao místico, pois já está suficientemente ocupado com as implicações
táteis dos objetos que rezam, comunicam, discutem, ajoelham, franzem o cenho...
Tendo todo um pequeno universo ao alcance das mãos, dentro de um círculo
disposto ao registro, como poderíamos pedir qualquer outra implicação além de
uma prostrada atividade que ora se aproxima, ora se distancia, a fim de
deslumbrar-se sobre o que está diante de si? Wiseman é um sentido ativo de
deslumbramento, nunca uma admiração passiva e exaltadora, sempre uma presunção
de possibilidades ínfimas, específicas, próprias da exatidão do que se vê.
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