nós não envelheceremos juntos

 


“O God, I could be bounded in a nutshell,

 and count myself a king of infinite space,

were it not that I have bad dreams.”


1.

Num quarto vazio de uma casa abandonada, a foto de um casal adolescente esconde-se dentro de uma revista pornô.  A imagem é uma pista do mistério, uma identidade secreta revelada nessa sobreposição de presenças bidimensionais, um pequeno mundo de intimidade protegido pelo abandono. A exploração das casas vazias, passagens de aventura, acomodam em reflexos a investigação do horror persecutório que acomete um coletivo, um grupo de garotas e garotos cuja identidade repousa sobre o passado da infância e a mobilidade do sexo.

Maika Monroe, assim que atingida pela maldição, torna-se um canal de libido ainda mais intenso. Ela retorna da transa amaldiçoada sem conseguir andar e logo terá que mediar os avanços dos dois garotos que disputam participação em seu castigo sobrenatural. E qual a natureza desse castigo, centro temático e comercial do filme? A entidade mutável que persegue com insistência os jovens praticantes do sexo é repassada com leituras insuficientes. Há uma ênfase geral no aspecto historiográfico do clichê de gênero, que encaminha a leitura do fenômeno para o terreno moral, “o sexo condena o corpo”, mas esse pesadelo moralista não está em tela. Pelo contrário, o pavor do pós-sexo redimensiona a vivência daquele grupo como uma injeção de energia em seu cotidiano insosso.  Em interpretação ainda mais desencontrada, a entidade não passaria de um símbolo brincalhão para as doenças venéreas (à época do lançamento, recorda-se tal interpretação como uma ferramenta comercial do projeto), uma imaginação ainda mais distante da tela.

No filme, a entidade que castiga o sexo é um aparato medonho de impermanência espacial. Ou seja, mais do que causar uma chacina, a consequência febril do perseguidor é a aceleração dos processos de mudança, a impotência diante do avanço do tempo e da fragilidade estrutural de qualquer entorno filmável. Surpreende a força dos planos gerais: os personagens de It Follows costumam diminuir em cena, os quadros distanciam os objetos não apenas para enfatizar a apreensão persecutória, mas para localizar os atores e as habitações em suas dores de transição. Uma força maligna contínua que existe para impossibilitar a estabilidade, sem assentamento possível, há de se achar conforto nas brechas silenciosas que pontuam transições nervosas. Portanto, antes de um pretenso efeito discursivo, o monstro do filme parece atuar sobre capacidades temporais e sensíveis.

Maika Monroe é enquadrada pelo avanço dessa maturação forçada. O loiro de suas sobrancelhas diminui a expressão do rosto, a reação ao maligno é de um prazer contido. Sua rotina é horizontal, flutua na piscina de casa ou deita naqueles quartos bagunçados de menina, sempre à meia-luz, sempre convidativos ao marasmo da cama, à preguiça adolescente. Seu corpo é um objeto de transferências, a câmera não a deseja de forma lasciva, apenas acompanha seus movimentos de passagem. Seus dois pretendentes sexuais, ansiosos pela maldição, principiam seus esforços libidinais com memórias de infância. Na conversa com o primeiro garoto, eles tencionam a lembrança do primeiro beijo, os pés se esfregando no sofá, no aguardo pela chegada da entidade. O segundo garoto, vizinho da frente, confessa que deveria ter prestado mais atenção nela, ao longo de todos os anos em que a avistou do outro lado da rua. A entidade reaproxima essas memórias ao presente instável, a maior parte dos diálogos entre o grupo remete a essa melancolia do tempo irrecuperável, o efeito de extasia das tristezas formativas.

Em nenhum momento o romance é sequer sugerido, os fins de aproximação física são sempre escorridos por intenções escusas, objetivos individuais e distanciamentos sentimentais. Numa falta generalizada de expectativas, os retalhos infantis remendam alguma tentativa de presenciar o agora. O sexo acomete o fim da infância enquanto não abandona a puerilidade da visão geral do mundo. Não há lição para ser aprendida na aventura sobrenatural, nem expansão da subjetividade de qualquer personagem em cena, apenas a aquisição imposta na consequência corrente da maturidade. Forma-se um desencontro rítmico entre o corpo e a mente, espaço para o surgimento de um mal-estar súbito que assalta a permanência desses jovens em suas habitações diárias. São adolescentes sem brilho e sem personalidades marcantes atingidos pelo efeito gravitacional da sexualidade, em que o peso da consciência sexual dificulta a necessidade de locomoção para sobrevivência.

A baixa cadência luminosa dos cenários internos, com apetrechos e móveis anacrônicos, torna os quartos em câmaras letárgicas. Consideráveis são os filmes que atingem certo nível tonal de marasmo, que transportam cinematograficamente esses abrigos adolescentes, a experiência de suas sensações de isolamento fixadas na projeção. Uma memória que ocorreu no reencontro com It Follows foi Correspondances (2007), de Eugène Green, em um diferente processo fílmico de assimilar essa mesma intimidade dimensional contida.

As internas convergem com as externas e seus planos abertos, sets de desabitação e fuga, mediação dos abrigos temporários que são perseguidos pela entidade. Nessas localidades, fica mais iluminado o texto histórico do filme, no sentido de que o cinema de gênero está sempre refém de seus desejos pelo passado, a corcunda historiográfica que deforma qualquer operação pretensamente atualizada em sua abordagem. Em defesa da especificidade do filme, a deformidade está ativada em sua desorganização de desejos, a nostalgia dispensada por uma tristeza muito maior, um não-pertencimento, fora da temporalidade revisionista, se arrastando como pode num movimento de anacronismo em depressão, onde os arquétipos familiares encontram efeitos de dispersão e frustração, de abordagens formais variadas.

Nos planos circulares, o direcionamento por ambiências que resguardam detalhes é composto em sua temática de mobilidade. O movimento interrompido pela descoberta de uma anomalia, nem sempre aterrorizante. O exemplo mais notável é a sequência médica que registra, num mesmo plano rotatório, uma variedade de pacientes em cômodos de vidro, até chegar nos garotos transando na cama hospitalar. É o momento em que ela decide, dentre os dois pretendentes, qual vai ter a sorte de ser condenado, e a revelação da escolha é enquadrada ao fim desse movimento como uma cristalização da brecha íntima: na cama do hospital, com um dos braços quebrados, a garota e o garoto dão continuidade à corrente maligna, como se protegidos temporariamente pela decisão consensual de adentrar as normas do terror, uma penetração contida na segurança da efemeridade.

It Follows não concentra seu erotismo no ato do sexo. As cenas que os personagens transam são decupadas em aproximações pouco carnais, diluídas em ambiência, uma superficialidade de conforto passageiro acomodada pela plasticidade das superfícies de contato. É o que acontece no sexo dentro do carro, no início do filme, que condena a protagonista pelo resto da projeção (percebe-se a insistência por imagens de mobilidade e estagnação, o sexo no carro estacionado). No terço final, quando transa com o outro garoto, ela afirma: “Não sinto nada de diferente”. A beleza da apatia da Maika Monroe está em conformidade com o terror denso que acompanha esse sexo frígido: o temor dos arredores está mais preenchido pela libido do que finalizado na intimidade compartilhada, tão rodeada por uma melancolia crescente que não suporta a banalidade da penetração, escondida num cenário de vazios.

O erotismo está presente nos breves cadáveres em cena, na pulsão de morte que preenche as lacunas do movimento constante. Na abertura do filme, aquela menina morta diante do mar, a perna revirada ao contrário, o rosto borrado de maquiagem e o salto-alto ainda no pé. Na morte do vizinho, a entidade transmutada na mãe nua, que sufoca o garoto em seu quarto até seu rosto ficar roxo. Há ainda a experimentação da orgia, que acontece fora de quadro, quando a garota decide transar com aqueles três estranhos na lancha. A cena termina antes do ato, quando ela está se aproximando, e esse vazio do corte nos deixando imaginar o sexo grupal como um pequeno massacre cometido pela protagonista, sabendo que deixará a vida daqueles homens entregue ao arrastamento de seu encosto melancólico, seu desligamento fatal com a ordem do tempo comum.

A socialização do sexo está inscrita nesses deslocamentos. Não há exatamente constrangimento, em parte pela falta de vigilância paternal, que liberta as andanças do grupo pralém dos limites familiares. A afasia existencial desses jovens é reforçada pela banalização da intimidade, uma transparência geral da maturação que infecta toda a organização cênica, o sexo não é segredo nenhum, se manifesta de qualquer maneira no âmbito doméstico, escolar, urbano. Por isso é preciso canalizar esse mal que nos acomete, tendo como consequência sua materialização do temor, que espelha o desejo na menina amaldiçoada e reflete sua opressão no monstro metamorfo que ora é um gigante, ora uma velha, podendo até ser uma criancinha ou um duplo do seu pai.

São modulações conceituais acumulativas. A ideia de que apenas os amaldiçoados podem ver a entidade adensa esse tratamento cênico de seus conceitos, no embate entre o material e o invisível, e ajuda a condensar e limitar ainda mais os refúgios íntimos, apertados por entre as regras do seu universo. Quando a entidade é emboscada na piscina, sangrando no fundo azul, o grupo se depara com esse absurdo fantástico, de várias regras imaginativas, em que o desamparo de suas agonias não encontra atestado de existência nas regras físicas comuns, só pode ser percebido no estado molecular mais instável, uma obviedade aterrorizante comprovada dentro da emboscada da liquidez. Mais do que apenas uma pretensão cinematográfica pelo nó do absurdo e pela sobreposição de conceitos com efeito acumulativo de folclore, It Follows atravessa o ridículo com uma tristeza muito reconhecível, passando por variações sensíveis que vão do conforto de um quarto escuro até o histrionismo musical de aparições abruptas de horror.

São essas variações que formam seu relevo sensível de medo e conformidade, uma descrença geral na possibilidade do prazer, da comunidade, da cidade, encontrando imagens que reverberem essa perdição. A garota que se olha no espelho do banheiro, seminua, surpreendida pelo estrondo no canto do quadro, que revela um menininho espiando-a pela janela. A velha sinistra que surge no corredor da escola, encarando fixamente a jovem que persegue, sem responder a nenhum estímulo de desespero que tenta interromper seu avanço. O casal recém-formado, nas últimas imagens do filme, que caminha de mãos dadas nas ruas de sempre, como se nada tivesse mudado, movidos pela consciência adquirida de que não há futuro que os abrigue.

 

2.

-When I was a little girl my parents would not allow me to go south of 8th mile. And I did not even know what that meant until I got a little older. And I started realizing that. That was where the city started and the suburbs ended. And I used to think about how shitty and weird was that. I mean I had to ask permission to go to the state fair with my best friend and her parents only because it was a few blocks past the border.

-My mom said the same thing.


3.


4.






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