dois longas em um festival online

 1.

Úlceras da tela plana

 Ou “Brakhage macetado: speedrun”

O filme do Vini, “A densa nuve, o seio(2020), é o tipo de projeto muito característico do consumo de cinema por torrents. Ele se alimenta da disponibilidade de arquivos digitais e da inspiração por cineastas muito redescobertas por uma geração recente de cinefilia (em especial, o cânone do cinema experimental americano dos anos 60 pra frente). Mas não se trata de uma emulação, um processo criativo baseado em apropriações que buscaria, em tese, recriar pelas vias digitais o cinema experimental químico de película, que é a escola de Brakhage (apesar de Vini se aproximar muito mais de Phil Solomon, outro hacker, do que do Brakhage em si). O que viabiliza a intensidade fílmica de densa nuve é o desentendimento entre a pixelização das imagens computadorizadas, uma série de formas quadradas que tentam, a todo custo, dar forma ao disforme, e um trabalho de registro de outros registros (a câmera que filma a televisão, que filma o que já é filmado e que rouba através dos arquivos).

Por diversos momentos, quando densa nuve revela uma tela sendo filmada, ele se afasta de suas abstrações simbióticas digitais para reconhecer-se enquanto um trabalho de apropriação de imagens que não lhe pertencem. O filme documenta seu processo como uma parte quase narrativa da experiência, deixando por vezes que uma deformação ou outra em tela se torne um espaço reconhecível (uma montanha, um prédio, um corpo distante).

Especialmente em sua primeira metade, concentrada em formações alaranjadas e vulcânicas, densa nuve é um trabalho de desvio imagético registrado em primeira pessoa. O limite da aproximação entre a entidade que domina a câmera por dentre as deformações é calcada por movimentações muito humanas, uma handcam viajante que se apresenta como planador por dentre as cores e os pixels. Vini se afasta ainda mais da derivação ao aceitar sua realização como abrangente o bastante para que os percalços entre a possibilidade do filme existir (da forma que existe) e a sua própria produção integrem um mesmo processo interessado em descobertas, tentativas, erros e enfrentamentos inevitáveis da câmera com a tela e das imagens com os filtros.

O acompanhamento sonoro estourado, formado por ruídos irreconhecíveis, caminha musicalmente com a desarmonia do digital brutalmente manipulado. É quase uma peça de música noise que serve ao filme uma camada expansiva de saturação, de gangrena imagética e sonora. Deforma toda sua composição, trabalha através de uma busca raivosa por arquivos que deseja desmembrar, abrir pelas tripas e deixar escorrer.

densa nuve tem uma pulsão muito agressiva de experimentalismo que desgasta sua duração, Vini lateja seu tempo de tela (dura 54 minutos mas se trata de um longa metragem, sem duvida alguma). O que perdura, por um poderoso interesse pela dor das formas, é sua potência de estouros e desfigurações que abandonam qualquer possibilidade de reconciliação fílmicam ainda mais sendo vistas em streaming. Não há harmonia possível entre as ferramentas disponíveis para a experimentação, as telas nunca vão se entender.


2.


Outro cinema contemporâneo

Muito esquisita a sensação de ver seu nome nos créditos iniciais de um filme sem saber que você estaria lá. Lembrei que li uma primeira versão do roteiro do Felipe em 2018, quando o filme ainda nem se chamava Passou, e senti vergonha dos comentários que fiz na época (lembro de não ter entendido muito bem o projeto). O que falei há 2 anos atrás não fazia jus ao roteiro, muito menos ao filme. Também está neste texto, então, uma certa tentativa de redenção.

Passou (2020) preza por um modo operacional. São procedimentos rígidos de duração, montagem e enquadramento que, aos poucos, denunciam seu modo de funcionamento e estabelecem uma linguagem baseada no tempo em que consegue carregar um mesmo plano. Felizmente, uma das questões muito esclarecidas do longa é justamente sua pretensão em fazer um cinema longe do ideal, seja o ideal do cinema jovem (filmes que se esforçam em mostrar que não se esforçam), seja o do cinema indie (indie, não independente, uma distinção muito importante), seja o do cinema contemporâneo (outro título importante que nunca significa o que deveria significar).

Seu centro de realização é determinadamente arcaico, proveitosamente firme. Baseia-se em declamações e monólogos de seu trio de personagens, enquadrados fixamente e envoltos em uma relação de proximidades hesitantes que caminham conjuntamente para decisões definitivas. O texto é quase sempre tomado como uma informação incompleta - uma não-exposição de suas figuras, que parecem conversar sozinhas com um interlocutor invisível (o extracampo enquanto personagem). O que acaba impresso são sequências de um poder dramatúrgico advindo da solitude, do abismo entre o discurso e o ouvinte mudo. O que parece um procedimento arriscado acaba assegurado por um grupo de performances mais do que consistentes de seu elenco reduzido (elogio raro a filmes ditos jovens). Eles carregam os monólogos com engasgo de cigarro, tempo natural entre as palavras e sem tiques da atuação novíssima (nenhum personagem nunca sussurra). Melhor ainda é como o texto mascara suas temáticas, sempre colocando em primeiro plano o aspecto  sentimental, quase melodramático, e em segundo plano os objetos e temas que produzem esses sentimentos.

É melancólico, claro, mas sua melancolia é toda construída na base dos planos que percorrem minutos, que não se movem e que não permitem mais de uma pessoa em tela (quando finalmente permite, é para desestruturar-se completamente). Define a cidade, sempre noturna, como um cenário de caixas retangulares de cimento preenchidas por janelas fechadas. Define o apartamento em mesas, paredes e tetos divididos por luzes e pilastras. Tudo está muito organizado, muito determinado, a escola do mumblecore encontra um fluxo temporal e imagético incomum em Passou. O fato de sua duração ser de exatos 70 minutos (o mínimo para um filme ser considerado um longa metragem), em números redondos, reitera sua força calculista, pensada em blocos concretos de imaginação formal e dramatúrgica.

Quando se desestrutura, quando seus personagens percebem como podem ocupar espaços assombrados e abandonar o isolamento das formas, toma o tempo com a libertação de seus próprios limites. Não que eles ainda não estejam lá, claro que estão, mas se confundem com o movimento de seus personagens, permitem que as dimensões, ora tão brutas, se encontrem e se formulem em novas comunicações. 

Nessa espera e nessa entrega, em certa paciência do processo, Felipe realiza um filme de juventude que nunca percorre o que imaginaríamos que deveria percorrer. Como se conhecesse e compreendesse tão bem o registro de determinados sentimentos (especialmente o sentimento de "alta madrugada", onde estão a insuficiência, o abandono, a memória) que não se priva em deixar que eles se formulem pela sedimentação do tempo em tela. Não importa o quanto demore, o importante é que chegue. E é lá pelos minutos finais que tudo se junta e se compreende. É quando você percebe que tudo estava lá o tempo todo, mas foi se revelando com toda a calma. Talvez esse seja o cinema do tempo presente, talvez o tal cinema jovem seja apenas um cinema sobre o que está passando.


Os filmes "A densa nuve, o seio" (2020), de Vinícius Romero Mazetti e "Passou"(2020), de Felipe André Silva, estão disponíveis online no Festival Ecrã até domingo (30/08).

https://festivalecra.com/longas-e-medias/


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