voluntários ao inferno
1.
Tenho vagas memórias de ter encarado a capa do DVD de Olhos
Famintos (2001) na locadora, quando era criança. Eu detestava a imagem
daquele olho falso saindo de uma carne costurada, por baixo de um filtro de
saturação ocre, muitíssimo característico dos anos 2000, e que remetia a algo
como os cartazes podres da franquia Jogos Mortais. Era uma visão
costumeiramente desagradável e fortemente desinteressante, que me influenciou a
não ir atrás do filme até recentemente.
Na realidade, nenhuma parte do folclore que intuí sobre o filme ao longo dos anos tem a ver com o que encontrei em tela. Se trata de uma aventura fantástica e grotesca, carregada por uma inventividade perversa e com um maravilhoso senso de recompensa. Um terror de imagens escusas, construídas por um universo mínimo e detalhado, que extrai um abalo trevoso de cinema ao revelar-se cada vez mais absurdo em suas especificidades mitológicas.
2.
Justin Long e Gina Philips compõe um casal de irmãos
destinados à barbárie. A longa sequência inicial, que estabelece uma desarmonia
e um desconforto preciso no relacionamento dos dois, forma tanto uma dilatação
do tempo dedicado à dupla, que aumenta a tensão pela iminência do desastre,
quanto uma ambígua pulsão sexual incestuosa entre os dois (que vai sendo descartada ao
longo do filme, quando a relação fraternal toma fins mais familiares). Tudo surge como sendo naturalmente torpe.
Prevalece, na dedicação do longa aos dois protagonistas, um
indiscutível desejo pela morte. As decisões estúpidas dos personagens, que
marcam absolutamente todas as chaves narrativas do filme, são de uma
inconsequência tão autodeclarada que acabam por proporcionar um senso de
atração pelo horror, uma vontade primitiva de colocar sua vida em risco. O monstro do filme, uma espécie de Robert Englund de
farmácia, concentra essa vontade incessante dos jovens irmãos em
serem consumidos por um misterioso universo de canibalismo caipira. Uma
experiência de pesadelo lúcido que aguarda ansiosamente pela revelação do rosto
do demônio e pelas consequências de tomar todas as decisões erradas, construindo blocos de terror interiorano cheios de pequenas ideias de fantasia. Até lembra
The Hitcher, do Robert Harmon, que também constrói o espaço da estrada
americana como esse palco desértico para um embate entre dois opostos que se
atraem por um mesmo apreço pela destruição, culminando em um similar núcleo de absurdos.
Acompanhando a linha de produção da época, focada no tal do “terror
autoconsciente” (incontornável no cinema de horror americano desde Pânico),
Olhos Famintos passa por uns aborrecimentos típicos dessa ativa tendência. Há uma verbalização constante que deseja pontuar a noção que o filme
tem de si mesmo (acho que a frase “se isso fosse um filme...” é dita uma
duas vezes). Apesar disso, nada na condução fílmica de Victor Salva aponta para
uma fuga do ridículo ou qualquer tipo de desculpa visual que compense os
momentos mais absurdos da fita. Após serem provocados com cautela, eles são enquadrados objetivamente, são iluminados, oferecem uma visão completa dos corpos, dos monstros e dos cenários assombrosos que os guardam. Especialmente na primeira descida do personagem
do Justin Long ao porão do monstro, uma sequência genuinamente fantástica e
cheia de composições visuais fortemente estilizadas, toda a possibilidade de
contato com o desconhecido é tomada por uma afirmação do poder das mais
assombrosas revelações. Sobre encontrar a liberdade do irracional e a preencher com monstruosidades.
3.
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