CINEMA DE REFLUXO #2: a virgem em apuros

1.

A propriedade rural é o espaço onde o fazendeiro rege o próprio tempo, um território laboral em conformidade com as vontades impostas pela natureza e administrado pela figura que aceita essas imposições. É, portanto, um território de paciência, onde o bucolismo não é pensado como atributo, apenas vivido em sua experiência mais subjetiva. Mas há sempre o perigo do aparecimento da cidade.

Pensemos no poder desse maniqueísmo. Se há como idealizar o espaço onde impera a conformidade entre o tempo da natureza e o conhecimento do homem, há como romper de formas incisivas nesse estabelecido modelo de compensações. Há como intuir nesse espaço uma ruptura da ordem rotineira com a simples presença do estrangeiro urbano e, assim, aguardar pela reformulação da vida interiorana, já que sabemos que ela nunca pode ser totalmente interrompida. Existe uma pureza a ser corrompida, um agente para corrompê-la, e a certeza da assimilação dessa corrupção por parte do sujeito violado.

2.

Em Lisa, Lisa (AKA Os 3 Marginais, AKA Axe, AKA), a jovem camponesa Lisa experiencia o bucolismo através de uma catatonia diária, cuidando de seu avô paralisado e decapitando frangos. Sua realidade é confrontada por um grupo de três bandidos engravatados em fuga que se estabelecem em sua propriedade. Muda, escrava dos forasteiros, a jovem se vê obrigada a construir uma forma de autodefesa.

Primeiro, pensa em suicídio. A longa cena em que Lisa cogita cortar os pulsos com a navalha de seu avô, enquanto encara o espelho, é precisa em evocar os sentidos destrutivos que irão culminar no massacre dos bandidos. O primeiro gesto da inocente vítima é contra si mesma, uma pulsão de morte que caracteriza sua mentalidade fatalista diante da interrupção de uma rotina que parece colocá-la no limite da sanidade. Quando decide não morrer, está a um passo de decidir matar. 

Retornamos ao grupo de vilões. Um deles, lascivo em sua monstruosidade incontornável, parte para estuprá-la de madrugada. A resposta já vem pronta: Lisa dilacera a nuca do intruso, serra a navalha em seu algoz. Diferentemente da morte que impõe aos frangos, breve e indolor, Lisa compensa a espera pelo encontro da lâmina com a carne ao garantir a agonia no assassinato do sujeito. A leitura dessa primeira matança como uma imagem para uma simbólica perda da virgindade seria injusta com o horror instaurado desde a primeira troca de olhares entre Lisa e os invasores, e a perda de sua pureza simplesmente não acontece. O que ocorre, na verdade, é a manutenção de seu estado intocado e atônito aplicado à operação de sobrevivência. É esse estado de pureza que permite Lisa matar. É dele que surge qualquer resposta à altura de um bando de homens cruéis, que só podem ser mortos pela capacidade da camponesa virgem de manter seu corpo, sua propriedade e seu trabalho isentos de qualquer violação.

Lisa mata outro bandido cruel com seu machado, enquanto o último é baleado pela polícia (é também o momento de maior convulsão estética no longa, quando todo o material concentrado em uma curta duração de 1 hora e o ratio reduzido encontram o embate físico entre as duas partes que entram em colapso). O sangue espirra em seu avô, que toma de bom grado a vermelha e ambígua sopa que lhe é oferecida pela neta. Está aí a assimilação final: o tempo discorre ao modo antigo, inabalado pelo horror, apenas assimilando seus atributos. O interior continua inviolável, resistente à violência que lhe é infringida. Não há nada que consiga fazer com que Lisa não acorde todos os dias para matar e cuidar de seu avô, a única coisa que pode mudar é a receita da comida advinda da matança.

3.










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