o autor fantasma



1.

Black Magic (1949), adaptação da série de romances históricos Memórias de um Médico, de Alexandre Dumas, estrelada por Orson Welles, tomou forma em um processo turbulento de realização. Os créditos colocam Gregory Ratoff como diretor, apesar da direção ter sido notoriamente conduzida pelo próprio Welles. Parte dos depoimentos de membros da equipe relembra Ratoff sentado em sua cadeira de direção, lendo jornais, enquanto Welles decidia pelos posicionamentos da câmera e de atores. 

Dentro do modelo de estúdios vigente, não era incomum que diretores adicionais (ou ocasionais) deixassem de participar dos estandartes oficiais dos filmes em que acabavam por trabalhar. Em certo aspecto, essas parcerias funcionavam em pactos que envolviam interesses artísticos e industriais: um diretor exerce o trabalho criativo, ou boa parte dele, e outro exerce o dever contratual. Nesse sistema, os créditos de uma grande produção acabam por funcionar, declaradamente, como um meio publicitário, onde cada nome está presente menos como uma forma de afirmar determinada realização e mais como vitrine do que (e de quem) deseja oficializar.

O resultado de um processo como esse são curiosidades como Black Magic, que deve sua memória ao peso que o autor/ator presente em cena representa. Parte da experiência que o torna um objeto de interesse vem justamente da ambiguidade autoral que paira quase misticamente sobre a obra, na impossibilidade de discernir as reais raízes do auteur-mor por trás de seus ocasionais encantos. Isso não só desconstrói uma relação de segurança entre espectador e filme como também obriga esse mesmo espectador a pensar cada bloco de cena como sendo uma oportunidade de invenção fechada em si, pois podemos estar diante (ou não) de um filme por Orson Welles, mesmo que nunca possa alcançar o crédito de um filme de Orson Welles em sua unidade. Isso foi e ainda é presente na figura do diretor, com sua longa carreira póstuma, que não deixa que essas discussões fiquem ultrapassadas. Poucos podem compartilhar uma busca tão grande do público por um determinado olhar em tela.

2.

Dentre tantas incertezas, o que se pode afirmar sobre Black Magic é que a obra nunca nega sua desconjuntura. Welles e Ratoff decidem adaptar Dumas como uma peça de Shakespeare (não por acaso é uma produção datada entre Macbeth (1948) e Otelo (1951)), com os volumes dos romances entrando quase como separação por atos. Sua incapacidade de arcar com um extenso número de personagens rodando em torno do hipnotista Cagliostro fica evidente quando uma narração mais do que apressada busca arcar com a tarefa de amarrar núcleos que correm paralelamente, algo que a trama maquiavélica de seu protagonista não consegue realizar. Uma jornada de muito desentendimento entre formas, autores, personagens e ambições.

A desconjunção acaba em servir, nos seus melhores momentos, ao epicentro de Black Magic: os olhos do Orson Welles - tanto em seu caráter imaterial, nas imagens escuras de iluminação objetiva e nas câmeras que surgem do alto para se aproximar dos mais curiosos detalhes, quanto em seu caráter literal, nas cenas de hipnotismo comandadas pelos olhos de Welles, no papel de Cagliostro. A hipnose surge como fator de pulsão formal, que desestabiliza construções de imagem e define praticamente todas as relações entre seus personagens. A magia é bem menos presente do que se deseja, mas, quando surge, faz questão de suspender os limites que o filme cria pra si mesmo.

É o que há, por exemplo, numa das passagens mais marcantes do longa: no momento em que o filme ilustra a adoração popular gerada por Cagliostro, seus olhos surgem gigantes em cena, sobrepondo a imagem de uma multidão em delírio. Pouco depois, esses olhos diminuem e somem em meio ao cenário da cena seguinte, sofrendo um pequeno raccord na transição entre duas imagens. Os olhos de Welles desaparecem em tela, enquanto um grupo fanático de seguidores tenta assisti-lo, sonhando que ele os olhe de volta. Está aí o processo do filme, impresso.

3.






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