como sobreviver à noite

 


1.

A humanidade, enquanto sentimento, tende a ser tratada como uma condição espirituosa, mas há grande interesse em explorá-la como um problema. Dá para dizer que grande parte do cinema exploitation, essa fatia nebulosa e diversa da filmografia mundial que atravessa os anos 60 pra dentro dos anos 70, se encarregou da tarefa de explorar a tal humanidade enquanto uma problemática para a continuidade de alguma moral possível dentro das normas sociais estabelecidas. Afinal, tratar com semelhança e proximidade as mais torpes figuras parte de uma disrupção com o estado presente.

Em 72, quando Richard Fleischer realiza Os Novos Centuriões, o grande cinema americano já estava em dívida eterna com o exploitation (está aí toda uma geração de cineastas criados e formados pela possibilidade do cinema barato e violento), mas Fleischer não estava. O veterano já havia afirmado seu espaço de exploração nesse campo décadas antes (Armored Car Robbery, Um Sábado Violento) e ainda viria a reafirmar no futuro (Mandingo). Ele se aproveita, mas não usurpa, dos princípios de uma escola cinematográfica cultivada pela literalidade (nunca negar o que está em tela como sendo o que realmente é) e pelo paradoxo (não corroborar uma constância em relação ao que se vê, ou seja, ao que se filma). Apesar de Novos Centuriões não ser um exploitation em sio gênero está presente o tempo todo em tela como interlocutor formal, em diálogo com outros cinemas. O caso é que, para que essa obra aconteça, os personagens do noir existem como personagens do exploitation, o que gera uma aproximação muito diferente em relação à realidade dessas figuras.

Portanto, não há dúvida de que Fleischer humaniza seus policiais em Novos Centuriões, mesmo nos momentos de maior brutalidade. Ele humaniza pois não há outro jeito de retrata-los, são humanos, não há como negar isso pois é o que está em tela. Esse é justamente o centro de sua dramaturgia: qual horror maior do que não poder negar como humano alguém tão terrível, tão nojento, quanto um policial?

2.

O que é mais custoso para a odisseia policial de Novos Centuriões é a inconstância, as resoluções impossíveis, os impasses sistêmicos propositais que mantém as manivelas de um estado de insuficiência. Os protagonistas são humanos mas agem como bestas, mediados e motivados por suas existências como força de trabalho. A síntese dialética é a violência.

Fleischer não faz concessões a certas estéticas newhollywoodianas (anos antes destas se tornarem uma autoparódia) que sempre estão menos a favor de uma estilização e mais a favor de um atmosfera própria. É um filme que nunca filma Los Angeles, quase nunca filma a rua ou a noite, está sempre confinado em suas figuras de condução espacial. Estamos com os personagens, limitados aos planos médios que enquadram seus rostos e uniformes, suas posições enquanto força de trabalho, e à veia atmosférica da obra, através de como eles se aproximam dos seus locais de dever. Habitamos a rua, não por causa dela, mas sim pelo trabalho que deve ser desempenhado ali. Quando adentramos o espaço privado, seja com a força policial agindo pela invasão ou pelo chamado, conhecemos pequenas narrativas que formam um mosaico de todos que existem enquanto problema a ser resolvido. É um retorno às telas divididas de O Homem que Odiava as Mulheres (1968), nesse interesse por histórias mínimas de gente comum, só que sintetizadas pela presença da polícia que age sobre elas (agentes narrativos desse universo).

3.

Ao contrário do que Lang (The Big Heat), Walsh (The Roaring Twenties) ou Ray (On Dangerous Ground) sugerem no noir clássico, aqui o mal não existe - não aquele que George C. Scott tenta explicar a Richard Keach na cena do bar. O mal a que Scott se refere é uma percepção do estado de seu ofício: a polícia é o membro estatal que mais reconhece os problemas de classe, que está mais consciente de seu funcionamento e que está mais empenhado em sua manutenção. As lições de Scott, em seu papel de mentor, são a própria perpetuação da violência de um trabalho que só promove inserções por dentre as brechas de um sistema que dá continuidade aos seus próprios problemas. O temor de um certo "progressismo", apontado por Scott nessa mesma conversa, é, na verdade, um inimigo inexistente de uma polícia que reconhece seu poder como uma inevitabilidade. Uma percepção de mundo baseada em acúmulo, não em realização ou complexificação, apenas baseada em consumir seu tempo de trabalho como um dossiê de marginalizações, um catálogo de questões nunca resolvidas, apenas acionadas, estando sempre prontos para um outro dia. A cena final do personagem de Scott é uma certeza dessas acumulações de horror mascaradas pelo trabalho: o único ato cívico que um policial aposentado pode cometer é o suicídio. 

Keach não é o protagonista por guardar algum conflito - nenhum conflito do filme pertence a ele, nem mesmo seus problemas domésticos, que funcionam apenas como marcador de tempo para percebermos sua profissão como um afastamento total da realidade. Keach é o protagonista porque, ao contrário de Scott, ainda está por acumular as informações necessárias para o funcionamento de seu trabalho: das engrenagens que opera a polícia para que eles mesmos se compreendam como à margem da lei. De levar adiante seu modo de operação laboral mesmo que você acabe com o estômago no asfalto, da força que leva você a acordar a cada dia, mesmo estando morto sem nem perceber. Da dissociação necessária para poder vestir uma farda.

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