eu não vou salvar ninguém



1.

O mais difícil em um filme é evitar a sua natureza moral. Em Knock at the Cabin, isso parece ser definitivo para construir seu horror, amplificar o sentido de suas imagens e complicar seu espelho com o espectador. Duas coisas ficam declaradas até sua conclusão: que a fé é a doença da alma e matar é inevitável.

2.

Não é muito interessante ficar fazendo diagnóstico de filmografia a cada novo lançamento de um cineasta, mas nesse caso parece difícil se aproximar das particularidades do projeto sem entender a grande divisória no cinema do autor. A partir de The Visit, os filmes abandonam sua gênese pictórica e são tomados por um formalismo totalmente físico. Ou seja, a construção de imagens não parte do quadro para seu campo interior (sua profundidade, sua distribuição, seu foco...), a coisa opera por determinações de posicionamento concomitantes ao andamento do plano, os personagens determinam o caminho da imagem ou são deslocados pelo deslocamento dela. Isso também acompanha o movimento do realizador em perceber que as temáticas de seu cinema estão mais nas relações estabelecidas em cena e no tom dessas performances do que nas narrativas que justificam esses encontros (o fato dessa ser sua segunda adaptação seguida também confirma a suspeita que transparece desde Split).
Não à toa, suas duas grandes estrelas da vez, Dave Bautista e Kristen Cui, são os responsáveis pelo primeiro enfrentamento do longa em sua cena de abertura. Um diálogo carregado pela suspeição, não pelo suspense (o que reafirma um cineasta depalmiano, não hitchcockiano), onde uma quebra quiroprática de eixo entre perspectivas em confronto estabelece os principais efeitos de ambas as performances no filme. Como de costume, temos adultos agindo como crianças e crianças agindo como adultos (recorrência autoral extremada em Old), mas com um enfoque pouco cerebral, carregado pelo absurdo das dissonâncias físicas. Dave Bautista é como um ogro com a lábia de um mago, um personagem anabolizado por uma bondade etérea, suspeita, que nunca faz questão de se confirmar na realidade para além do nível do seu tom de voz e das constantes justificativas proféticas para suas ações trogloditas. Kristen Cui é a primeira a experenciar o terror dos invasores, consequentemente a primeira a acreditar no apocalipse, uma personagem dotada da desnaturalidade graciosa que o tempo de entrega das falas e o peso constante do texto proporcionam na presença da performance.
Todos os outros personagens não estão à altura da dupla inicial. Rupert Grint é o que vale mais atenção, sua morte é o grande momento do filme.
O casal que centraliza o sacrifício é desinteressante e incapaz de resguardar particularidades. Uma primeira reação é tentar justificar esse vazio pelo interesse maior do filme em apertar o nó da problemática principal, onde eles precisam existir como uma suposta normalidade intocada pelo absurdo. Os flashbacks, apesar de servirem no começo como esse tempo "limpo" de tela enforcado pelo presente em crise, deixam essa justificativa pelo meio do caminho, conduzem os personagens para uma existência nem exatamente esvaziada, nem propriamente dramática. O que salva esse aspecto e brutaliza a experiência do filme é a condução cênica do absurdo, justamente o senso de emergência e medo que mascara esse esvaziamento dramático e o golpeia com operações de choque vividas pelo casal. Vale ressaltar dois momentos em que isso acontece: O flashback do bar e a morte da Nikki Amuka-Bird. Se estamos do lado deles na projeção, é porque a temência à vida está acima da temência à Deus, pelo menos no plano da sensorialização fílmica (que acaba sendo o plano de maior interesse, a feliz custo da experiência). Para garantir que a humanidade não seja extinta, esse casal gay precisa morrer: parábola ou anedota? Não enxergando a diferença, aceitemos a pior (ou melhor) das opções.
O que é condizente, e ai está uma amarra maldita que o filme complica para si mesmo, é que a problemática nuclear da parábola de sacrifício é resguardada de uma resolução que não seja dramática. Moralmente, se condena até o fim pelo movimento do horror (a revelação sobre o personagem do Rupert Grint empurra o destino do mundo para a condenação, afinal as coisas realmente são o que parecem ser) e pelo desejo de imaginar destruições quase totais do nosso planeta (onde restar alguma vida talvez seja a mais terrível das opções). Religiosamente, está mais próximo de um gracejo herético do que do protestantismo ou de religiões imanentes. A crença é essa esquizofrenia da certeza, a base de toda machadada no crânio. Resta, com o fôlego de um sobrevivente, um filme de experimentos e costumes, forte em sua degradação, em seu engenho imparável de deslocamentos por diferentes percepções da realidade.

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