CINEMA DE REFLUXO #3: no escurinho do meu quarto

 


1.

Hideshi Hino carrega seus quadrinhos no preto, criando a escuridão que circunda seus personagens e os consequentes derramamentos de sangue que mancham toda página. As vítimas da tinta preta, geralmente, são essas figuras rechonchudas e pálidas, prontas para serem apodrecidas, esquartejadas ou esfoladas.  Afasta-se de outros gigantes contemporâneos do mangá de horror como Suehiro Maruo, pois trilha os visuais da desproporção, do cartunesco mais elementar, das aparências cômicas de personagens que vão sendo retorcidas pelo detalhamento das violências que sofrem, dos monstros que enfrentam e que acabam por se transformar.

De forma mais imediata, podemos dizer que Hino, quadrinista, está bem longe do campo do retrato e da realidade. Seus gibis são do tipo que se aprofundam inteiramente em seus próprios ângulos de terror, calcados por formas arredondadas e assimiladas em figuras ingênuas que são desenhadas exclusivamente para trilharem os caminhos mais grotescos possíveis. Seus quadros são maleáveis às formulações de seus infernos, igualmente retorcidos e fluidos, criando todo um projeto em que há um universo de dissonâncias diabólicas borbulhando enquadramentos curvilíneos e tenebrosos bonequinhos esféricos. Mas o que há em Hideshi Hino, cineasta?

Quando é convidado para escrever e dirigir o segundo filme da série Guinea Pig, Hino é obrigado a reimaginar sua invenção de horror. Limitado a um orçamento ridículo e fechado em uma única locação, resulta seu esforço em Guinea Pig 2: Flowers of Flesh and Blood (1985) e, posteriormente, Guinea Pig 6: Mermaid in a Manhole (1988). O que mais surpreende, na projeção conjunta dos filmes, é a quantidade de particularidades cinematográficas que Hino extrai do contexto. Indo em direções contrárias a seus barrocos e complexos arranjos quadrinhísticos, encontrando especificidades na filmagem em vídeo e na abstenção de narrativa, encontramos um trabalho muitíssimo personalista dentro de um projeto afundado em convenções. Façamos o esforço de compreender sua breve e trevosa jornada pelo aparelho fílmico.

 

2.

FLOWERS OF FLESH AND BLOOD

Não há premissa estética mais direta: um assassino em série sequestra uma jovem mulher e a desmembra em frente às câmeras, enquanto ela está sob efeito de uma droga que a inibe de sentir qualquer dor. A ambiência inicial, ao acompanharmos o rapto e a preparação para o grotesco, é especialmente terna. Sugere um cenário para um pinku dos mais extremos, porém as penetrações de Hino são outras. Devemos evitar as precipitações, pois logo os quadros serão assaltados pela carne.

O que se sucede, sem qualquer interesse por conflito, é uma aproximação silenciosa e íntima da maratona de destruição que o corpo da vítima irá sofrer. Até o momento em que a serra do assassino finalmente encontra a pele da garota, ainda parece que algo poderia salvá-la. Não é o caso. Quando seu primeiro membro é serrado, o filme desacelera, o tempo padece, e tudo passa a ser sobre repetitivos gestos de mutilação, filmados com insana serenidade.

Enquanto os instrumentos cortantes afundam na carne, a vítima, dopada pela falta de sentidos, observa, tonta, seu algoz. Ele, em sua calmaria, ocupa-se em não desperdiçar nenhum momento de sua monstruosa proposição artesanal. Serrando as pernas, os braços, as mãos e a barriga de sua vítima, o assassino inebria-se nos membros libertos da condição viva. A cada etapa, muda as cores dos filtros que iluminam sua câmara de tortura (seu ateliê) e concentra-se nas cores e texturas que acaba por produzir em conjunto com sua matéria prima grotesca.

O que mais parece interessar à câmera de Hino são os detalhes de seus efeitos práticos, suas borrachas serradas e suas tintas rubras, aliados ao silêncio da clausura no quarto do assassino e sua unidimensional (e gratificante) proposição dramatúrgica, que não abre espaço para nada além de consequências sensoriais de uma barbaridade conscientemente gratuita. Ao invés do que viria a ser o gênero torture porn, com seus vícios morais e seu miserabilismo entediante, Guinea Pig 2 é uma criação brutalmente sensível, que estende uma ação grotesca por um determinado tempo e por um determinado ângulo até que ela seja assimilada com uma intimidade desconcertante. É um filme que nunca se justifica, pelo contrário, apenas se condena. Torna-se ainda mais imoral por aceitar a apreciação do horror extremo e invocá-lo até seus derradeiros estágios poéticos.

 

3.

MERMAID IN A MANHOLE

Partimos para uma premissa mais fantástica. Um pintor atormentado encontra no esgoto uma atraente sereia à beira da morte, leva a criatura para casa e se dispõe a retratar o apodrecimento de seu corpo, infectado por bolhas e perebas prestes a explodirem. Apesar de uma narrativa mais encorpada, Hino não se ocupa com muita coisa além de uma escatologia fabulosa.

Ainda mais colorido que Flowers From Hell, Mermaid concentra-se na obliteração de um corpo fantástico. Ou seja, dispõe de uma infinitude de possibilidades grotescas ainda mais alucinantes. No corpo da sereia amontoam-se formações perebentas expelindo fluidos corporais coloridos que vão do branco ao lilás. As cores escorrem pela carcaça agonizante (aqui, a dor é mais do que presente) e engorduram o corpo da sereia moribunda. De dentro das perebas estouradas saem larvas, minhocas, serpentes, vermes, todo tipo de ser rastejante e escroto que parece constituir as entranhas da criatura de rosto angelical. Amontoada em vômitos, tumores e outros materiais engordurados, a sereia se prontifica à imortalidade pelo pintor obsessivo que, em seu quarto escuro, se entrega totalmente à fixação por aquele corpo que borbulha nojeiras, reimagina qualquer concepção de doença, e os dois ficam em um microcosmo insuportável de aberrações corpóreas.

Hino não se afasta disso em momento algum. Metade do tempo de tela é dominado somente pelos detalhes desse corpo em fugaz apodrecimento, vívido pela quantidade de horrores que é capaz de produzir. Os planos são fechadíssimos, sua ambiência é sufocante e ocre, percorrendo a maior aproximação que consegue dos piores estágios da carne. Resulta desse experimento mínimo de fabulação uma história de fantasia vivida no mais íntimo e mais desagradável dos olhares.

Se há algo como uma emoção extrema, Hideshi Hino, cineasta, foi feliz em sua emulação. Partindo da invenção do precário e atingindo camadas nunca antes vistas de depravação visual e irresponsabilidade artística, seus Guinea Pig alcançam o mais custoso de todos os elementos do terror: o sentimento. Nessas tocas grotescas de personagens dementes pode surgir todo tipo de depravação, mas nunca falta o encantamento com o fundo do poço.


4.


5.






Comentários

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