eu não sei onde fica o mato grosso do sul
1.
Existe algo nas obras malditas que acaba por revelar os limites, tanto dos espectadores quanto dos realizadores.
Compreende-se, pelo menos em partes, quais as formas de afastamento entre o
produto e o consumidor, exibe algumas das estranhas linhas
que separam experiências comerciais vitoriosas de pontos fora da curva,
aberrações, anomalias industriais. É o que se esconde por trás da rejeição, o
conjunto de desconjunções que permite a um autor se afastar dos cânones, gozar
da liberdade da má fama, resguardar uma obra da celebração, do holofote. E tudo
começa pela ambição.
Quando Roberto Farias se deslocou até a fronteira do Brasil
com o Paraguai para filmar Selva Trágica (1963), as pretensões eram
vivas. Após uma sequência de sucessos comerciais e críticos, havia espaço
cativo para que o cineasta emplacasse mais uma vitória. A resposta foi dura. Selva
Trágica não alcançou nenhuma das expectativas financeiras, teve fraca
reverberação e saiu de cartaz em pouco tempo. A consequência foi um retorno de
Farias às comédias, que acabaria emendando na trilogia fílmica de Roberto
Carlos (que, a seu modo, ainda resguarda diversas pulsões vanguardistas). Por
anos, o próprio Farias demonstrou desgosto pelo filme.
Mas o que há em Selva Trágica? O que o castiga? Há de se perceber o teor de sua ambiência: nas plantações de erva mate, onde a vida é o trabalho e o trabalho é escravo, não há qualquer possibilidade de existência além de um profundo desejo de morte.
2.
Uma primeira imagem capaz de demonstrar o horror contido em Selva
Trágica acontece logo nos primeiros 20 minutos. Após capturar o grupo de
protagonistas e decretar sua escravidão, o chefão do lugar se dirige até a
janela e tenta encarar o céu. Não consegue. Leva a mão ao rosto, reclamando que
os olhos doem, não param de doer. Nem ao mais alto cargo do local, um senhor de
engenho perverso e diabólico, é permitida a liberdade. Dele, se retira a
capacidade de ver o próprio horror que impõe. Nem ao diabo é permitido ver o
inferno.
A partir daí, o tom do filme dificilmente varia. Reginaldo
Faria, ao lado do veterano Jofre Soares e da jovem Rejane Medeiros, se encontram
em um ciclo interminável de agonia. Aprisionados em um cenário de Brasil
colônia, que nada mais é do que um cenário de Brasil moderno, o trio é
castigado por um preto e branco impiedoso, que torna as externas diurnas em um
mar de branquitude cegante e as noturnas em uma extensão de vazio preto. Rejane
é atormentada por um capataz tipicamente impotente, mas instável e violento,
que a ameaça constantemente de estupro. Reginaldo, outrora um galã bronco, espécie
de Charlton Heston interiorano, típico herói de gibi de aventura, afunda-se em
vergonha e rancor. Farias filma o rosto catatônico do irmão sem qualquer
distância que permita o respiro. Não são poucos os momentos em que Reginaldo e
Jofre são enquadrados um ao lado do outro, dentro de seu barraco, encarando o
chão, apáticos, compartilhando um silêncio que demonstra que estão habitando um
espaço onde o tempo custa em passar.
Enquanto isso, no fundo, sopra a trilha do Luiz Bonfá, quase toda carregada por cânticos populares. Ao invés de suavizar as imagens que acompanha, ela intensifica sua natureza aterradora. O som etéreo contrasta de tal forma com a fadiga dos corpos em cena que suas dores se tornam ainda mais severas e profundas.
Essa plantação de erva mate, escolha precisa do romance de
Henri Donato que consegue ser reimaginada por Farias, encontra-se num estado de
suspensão da realidade ao mesmo tempo em que torna tudo em suas extensões mais
real (pela via da dor, claro). No interior do Mato Grosso do Sul, isolado nesse
Brasil profundo, a plantação ganha os contornos de uma redoma invisível de
captura da liberdade. Ela é um não-lugar, um esconderijo de todas as dominações
que estão às claras, uma peça na manivela do desenvolvimento colonial que se
recusa a enferrujar. O dominador (que recebe a alcunha de companhia) é
essa presença esmagadora e terceirizada que delimita o espaço pela necessidade
de reter o arbítrio, que se movimenta pela completa danação de quem ali trabalha.
O cheiro da erva mate é apontado pelos personagens como uma perturbação
imparável que impregna todos os arredores, que não sai de suas mãos cansadas e
não abandona o olfato. É só através de uma imaterialidade opressiva que todas
as outras opressões físicas, visíveis, se mostram completas. Lá, o ar que se
respira é insuportável, e isso está em tela.
E então, surge a fuga. Mais um fracasso. Rejane é
recapturada por um grupo de capatazes, ao passo em que Reginaldo tem a
possibilidade de fugir para o Paraguai. É claro que ele não foge, e retorna
para tentar salvar sua amada. Mas a luta é injusta. Cercado por capangas
armados, finalmente decide morrer, não antes de ser condecorado como “um homem
de verdade” por um de seus algozes. Está aí alguma recompensa possível, o
suicídio como última dignidade daquele que foi privado de uma existência
alternativa à escravidão. O som do tiro ecoa e só restam as árvores da
paisagem, mudas diante de tudo.
3.
Ao invés de Visconti, falemos de um professor mais próximo:
Humberto Mauro. Nessa sequência final, fica explícito como Roberto Farias, ao
lado de outros como Ozualdo Candeias (e não daria Selva Trágica uma
sessão dupla perfeita com Caçada Sangrenta?), é um dos grandes alunos de
Humberto Mauro. Não só pela forma como filma o campo aberto, ou como se
interessa pelo movimento do imóvel. Ou até por ser, como Mauro, um grande
sentimentalista, mas sim por ser um exímio artesão industrial. Há uma
capacidade de construção em Farias, que se apresenta nas cenas de tiroteio do
início, se intensifica nas sequências de trabalho na plantação e se encerra nos
últimos planos/contraplanos do filme, que está diretamente ligado tanto ao seu
domínio da pulsão objetiva (a vibração que extrai de uma correria, de um beijo,
de um tiro) quanto ao seu talento de composições do nebuloso (o plano que se
faz pela sombra, pelos céus, pelo fogo).
Se é renegado a Selva Trágica um reconhecimento mais
amplo de suas riquezas características, também deve ser pensado o vazio que seu
esquecimento provoca. Justamente quando é tão difícil de separar, em uma
experiência de sala de cinema, o que gostaríamos de sentir com o que de fato
sentimos. A dor não para.
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